domingo, 7 de janeiro de 2018

SEBO LITERÁRIO PÁGINA 7/PORTAL CEN

SEBO LITERÁRIO
 

Isabel Cristina Silva Vargas


 
 
 
CONTOS
Pág. 7 de 7 Pág.
 
Ritual

Levanto-me, arrumo a roupa, como alguma coisa e saio, não sem antes pegar meus objetos indispensáveis para a peregrinação diária- a bíblia, o terço. e o meu crucifixo.
Gosto de ler as passagens, os salmos , de cantar os hinos de louvor a Deus .Gosto daqueles mais tradicionais, mais solenes . Hoje têm algumas em ritmo mais moderno que eu acho até desrespeitoso com Deus, Jesus, Maria e os santos em geral.
Modéstia à parte, tenho boa voz, canto bem e alto. .Tanto que às vezes pego as pessoas me olhando um tanto desconfiadas - isto quando dá o acaso de cruzar o olhar, porque não fico me exibindo, nem olhando para os outros. Devem achar que sou louco. Mal sabem que eu também já pensei isso. Mas foi em outros tempos. Sou assim, meio bicho do mato, de pouca conversa e poucos olhares. Vivo dentro da linha que tracei para minha vida. Pelo menos acho que fui eu.
Cumpro um ritual diário.
Vou à missa todos os dias.
Antes fico ali horas a fio. Passeio na volta, olhando cada detalhe da parte de fora, até porque tem hora para abrir. O interior conheço cada detalhe. É como se fosse minha casa. Acompanhei as poucas mudanças que ocorreram. Vou ali desde pequeno, antes de sair a correr mundo à procura de explicações para coisas inexplicáveis ou para fugir dos caras que me procuravam.
Quando voltei e ainda não podia me expor muito, era onde eu ficava.
Chego cedo, fico sentado no banco embaixo da árvore, bem de frente para a porta. Leio, peço perdão, rezo. O terço todinho. Enquanto isso vai me subindo um sentimento que não sei explicar e me lembro de onde e como eu poderia estar e tenho vontade de beijar os pés de Jesus por me permitir andar por tudo . É quando eu me ajoelho e beijo o chão e fico de braços abertos agradecendo por esse mundão todo à minha disposição.
Em outras ocasiões fico de pé todo o tempo, afinal sacrifício, penitência e jejum limpam as impurezas da alma. Fico ali desafiando os postes para ver quem permanece mais tempo durinho, estaqueado só olhando para cima com aquele olhar de Jesus Cristo, só olhando pro pai, menos na hora algoz, claro, quando ele não agüentava mais e baixou os olhos de tão desanimado. Sei bem como é isso.
Agora não baixo mais os olhos. Ando sempre empertigado. O olhar sempre num ponto fixo. Sempre olhando para frente, reto, sem virar para trás nem para os lados. Só para cima e para dentro de mim.
Talvez por saber tanto do Dele e tudo que ele deve ter sentido que ao me olhar no espelho até me acho parecido com ele. Quando não tinham me cortado o cabelo e a barba então, era mais ainda. Quase igual.
Aí depois de todo esse ritual diário sento na porta da igreja, coloco a caixinha do meu lado e a fico até a hora de assistir a missa e encerrar meu dia, até recomeçar tudo de novo.
Isabel Vargas
 
Sentimento amordaçado

Tenho que manter muita coerência entre o que penso, digo e realizo. Será que tenho mesmo? As contradições não fazem parte da nossa humanidade?
Não posso me deixar levar por desespero nem cultivar a desesperança. É preciso manter o equilíbrio e saber aceitar momentos de dificuldades como invitáveis. Não posso ter a pretensão de acreditar que este momento não chegaria. Ele chega para todos nós. Tinha muito medo de enfrentá-lo. Não sabia como reagiria que sentimento apareceria. Quando foi com meu pai ainda era jovem. Foi diferente. As emoções se misturavam. Era um misto de dor e insegurança, mas o futuro se descortinava na minha frente. Acreditei que o tempo me faria entender muitas coisas.
Agora, apesar da enfermidade que já se instalara e da qual eu procurei me manter afastada - pela minha incapacidade de lidar com ela - por antever a morte, percebo que fugi a vida inteira da única certeza da vida. Como outrora os sentimentos continuam misturando-se em minha cabeça(ou no coração?) Por que só penso? Por que racionalizar tudo? Devia me deixar sentir, esgotar os sentimentos até a última gota. De que? Se nem choro...
Sei que devia chorar. Por que não consigo?
Sei que a dor é grande. Ou devia ser?
Sinto que me arrancaram as raízes.
Pairo solta no espaço.
Isabel Vargas
 

Sexta-feira da Paixão

Ano: 1987. Mês: Abril. Planos: Ir à Procissão na Sexta-Feira Santa rezar, agradecer pela vida e saúde das meninas e pedir proteção para ter um bom parto já que a data se aproximava.
Ao amanhecer, trabalho de parto iniciado, lá fui eu para o hospital.
Antes das 9 horas daquela Sexta-feira da Paixão, já estava com meu menino nos braços. Parto rápido, feliz, muito feliz, como foram os 23 anos que se seguiram.
Amado por toda a família, amigos, colegas, alunos, todos que com ele conviviam.
Ano: 2010. Nas primeiras horas de uma sexta-feira de maio, Jesus que tinha me emprestado um anjo de doces olhos azuis por inesquecíveis 23 anos o tomou de volta tragicamente.
Meu calvário teve início.  
Isabel Vargas
 
Sorte selada  “O Tempo me ensinou a não acreditar demais na morte nem desistir da vida”
Lya Luft

Era uma tarde de sol muito quente. Dava uma lerdeza danada no corpo. Só o que andava rápido e solto era o pensamento. Tudo mais parecia se arrastar.Avida... Os dias todos muito iguais, repetidos, arrepiantes de tão chatos. Novidade... Até esquecera o que era uma novidade.
Já nem sabia por onde andava aquela menina moleca que sonhava com uma vida muito diferente daquela. Queria aprender música, tocar em locais distantes dali, brilhar nos saraus, casar com aquele seu professor de piano e com ele ganhar esse mundão de Deus. Aliás, nem sabia se ela existira realmente. Ou se tendo existido já estava morta.
Não tivera escolha, a pobre. Quando percebera o pai já tinha decidido. Fora escolhida para casar com o primo. Coisas de conveniências, manterem patrimônio, essas idéias práticas, lógica de homem pela qual ela nem se interessava muito.
Sua sorte fora selada tal qual dos bois da fazenda. Uns para corte, outros para a lida. Todos marcados, no couro e no destino. Sentia-se igualzinha a eles. Todo dia fazia a mesma coisa.
E os sonhos?Já nem lembrava se os tivera mesmo. Se eram seus.
Olhava-se no espelho e não se reconhecia. Era o fantasma de si mesmo. Esse fantasma que a aterrorizava e mostrava que a morte dos sonhos era a morte da alma.
Então... morta ela se sentia...
Sentia-se igual a tudo em sua volta. Propriedade alheia. Sem passado, sem presente, sem alma, sem futuro.
Foi, então, que o alarde das crianças lhe tirou do torpor em que se encontrava.
Não é que algo estava acontecendo lá fora?
E o que se passou diante de seus olhos gelou o sangue em suas veias, embora o calor reinante lá fora.
Não é que Cabiúna, o boi que ganhara o mundo tinha voltado?
Como pudera ter voltado depois de sentir o gosto da liberdade?De viver sem patrão? De pastar em outras pradarias? De estar livre da canga e do relho?
Será que não sabia mais viver por sua própria conta?Será que precisava que lhe dessem um sentido para sua existência?Será que só tinha vida a serviço do seu dono?
Não tinha vida fora disso?
E o pior estava acontecendo ali. Estavam tirando-lhe o que restava de vida.
Podia o homem ser o Senhor da Vida e da Morte?
Sentiu as lágrimas escorrerem em sua face.
Sentia-se tal qual o boi velho.
Onde estava o sentido de tudo? Na vida? Na morte? Nos dois? Em nenhum dos dois?
Percebeu que o sentido de tudo talvez estivesse nela mesmo. Em reencontrar a vida dentro dela.
Foi preciso um choque para lhe mostrar que tudo dependia dela. No que podia fazer daqui para frente.
Reencontrou o que julgara perdido para sempre.
A esperança...
Não ia esperar para tirarem-lhe o couro também.
Isabel Vargas
 
Vírgulas
 
"A vida é um grande e complexo texto que precisa de muitas vírgulas para ser escrito, ainda que essas vírgulas assumam em alguns momentos o formato de lágrimas.”
Augusto Cury

Manhã de muito calor. Paradouro de estrada. Meus familiares entram para lanchar. Escolho uma mesa na área externa e acomodo-me à sombra. Providencio água e comida para meu cachorro que viaja conosco. Chega uma moto com duas pessoas, quase simultaneamente. Ao tirarem os respectivos capacetes e se acomodarem à mesa em frente à que me encontro constato que se trata de um homem jovem e uma senhora idosa. Ela permanece ali. Sorri para mim e ele entra no estabelecimento. Retorna com refrigerante gelado para ambos. Trocam algumas palavras, viram-se para mim, como à espera que eu participe da conversa. Faço algum comentário sobre o calor. É o sinal para que a conversa se estabeleça.
O rapaz conta-me que se dirigem par uma localidade próxima, no interior do município, percorrendo uma estrada de terra. Mostra-se otimista com as notícias de jornal que informam ter sido disponibilizada verba pelo governo para asfaltar aquela região. Está na última semana de férias e como não gosta de ficar parado está indo prestar ajuda aos cunhados na colheita do fumo. A sua mulher que não pode tirar férias do trabalho na mesma época permanecera em casa com o filho de 14 anos.
A senhora, pequenina, franzina, de cabelos brancos bem curtinhos, sogra do rapaz, conta-me que também pretende ajudar os filhos em suas tarefas. Fala-me de suas manias, seus gostos e preferências, entre elas a de que deseja permanecer morando sozinha enquanto sua saúde assim o permitir. A cada coisa que fala enfatiza que o genro é sua testemunha.
Até então, falávamos de amenidades, como em uma ante-sala de conhecimento. Quando ela começou a discorrer sobre coisas mais profundas é que fiquei a pensar na sua força interior, na sua tenacidade, gosto pela vida, na enorme capacidade de resiliência, inimaginável para quem se detém só nas aparências. Havia perdido um filho em um acidente de moto anos atrás. Uma perda desta natureza abate qualquer pessoa. Em se tratando de uma mãe, não existe, certamente, dor maior que esta. Difícil aceitação, recuperação e superação Quem permanece vivo, muitas vezes parece moribundo, tentando equilibrar-se entre a dor, a vontade de resistir ou deixar-se abater, procurando sublimar a dor para poder sobreviver. Mas não era só isto não. Só? Não é possível, pelo menos para mim, referir-se a algo tão intenso de maneira tão desproporcional ao seu impacto emocional. Tinha mais e isto ela contou para meu marido, quando ele veio trocar de lugar comigo: Havia perdido outro filho entre o Natal e o Ano Novo. Fiquei horrorizada ao saber do fato. Dissera ela que a morte é inevitável. Cada um tem sua hora e que nada podemos fazer.
Ao saber disso não pude deixar de lembrar o livro que lia, sobre Inteligência Multifocal de Augusto Cury que diz que só é grande quem consegue desvendar os caminhos internos, o seu eu e desenvolver o gosto e o encanto pela vida, apesar das dores mais profundas.
Vi naquela pequena grande mulher, um pouco do Vendedor de Sonhos do mesmo autor, que oferece vírgulas para cada um continuar sua história, enriquecer sua existência e encantar a todos.
Os pontos são definitivos, egoístas, encerram-se em si mesmo, não partilham histórias, tempo, experiências e encantamento.
Eles me pareceram exímios em colocar vírgulas nas suas vidas, estabelecer pontes por onde passam cortesia, amabilidade, generosidade (ao ver-me sem uma bebida, apesar do calor, ao chegarem, ofereceram para dividir a sua comigo), sabedoria e resiliência que é a capacidade de se recompor a cada pressão sofrida.
Suas palavras para mim, antes de partir foram:- É isto que gosto, que acredito importante: conhecer pessoas, conversar, trocar idéias, experiências. O resto, não levamos conosco.
Isabel Vargas
 

 
Livro de Visitas

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