domingo, 7 de janeiro de 2018

SEBO LITERÁRIO PÁGINA 6/PORTAL CEN

SEBO LITERÁRIO
 

Isabel Cristina Silva Vargas


 
 
 
 
CONTOS
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Olha o trem...

Mais um dia estava começando. Uma jornada de trabalho findando. Estava cansado. A noite fora longa.
Maio é um mês que o frio e a umidade da região já começam a formar denso nevoeiro. Não gosto de nevoeiro. Encobre tudo ao redor. O céu, as estrelas, a lua e até os pensamentos.
O cérebro parece que esvazia, o barulho da máquina vai tomando conta e nos hipnotizando. Aí complica. Não dá para dormir.
Como deixar 40 vagões carregadinhos de cimento, madeira, cerâmica, mais os tanques de combustível ser guiado por um quase moribundo? Era assim que me sentia quando o sono chegava e não podia deixar que ele se instalasse.
Sempre fui um bom maquinista. Atento, pulso firme, responsável, cordial com os colegas na companhia. Afinal, era um bom emprego. Federal, com regalias, boa aposentadoria. E ela já se aproximava. Contava os meses que faltavam para chegar e ser a companheira de lazer, nas pescarias, nas viagens sem preocupações para o resto da vida.
Estes pensamentos até me deixava mais esperto, apesar da sonolência que permanecia.
Já estava próximo da penúltima estação. Mais um cruzamento e já estaria lá.
No tempo dos passageiros ali pegava muitos estudantes que iam estudar na cidade. Levantavam muito cedo os coitadinhos. Tinha até criança de seus 13 anos que iam até a estação em Pelotas e depois caminhavam até o colégio em diferentes pontos da cidade.
Atualmente, o que ocorria, de vez em quando, embora fosse proibido, era dar uma carona para alguém conhecido que se empoleirava junto na cabine. Hoje, para tirar o sono, bem podia ter sido um desses dias.
O trem estava se aproximando da casa de pedra junto aos trilhos, bem no cruzamento. Ali estava ela.
O apito! Devia ter apitado antes. Não podia vacilar. Está certo, era cedo. Não havia movimento no cruzamento esta hora, mas o sinal é obrigatório.
As árvores nas proximidades dos trilhos atrapalham a visão dos que passam naquele ponto.
Gostava de cumprir à risca as regras de segurança. Devia apitar bem antes para sinalizar que se aproximava. Na próxima jornada tomaria mais cuidado. Iria levar mais café. Um rádio de pilha, embora gostasse do papo interior desenvolvido na cadência do trem. Era como se a máquina colocasse seus pensamentos no rumo certo. Nos trilhos, como se costuma falar.
Desta vez, porém foi diferente. Os pensamentos saíram dos trilhos.
Só foi possível perceber quando arrastava metros à frente, o carro que não ouviu o apito do trem e atravessou os trilhos...
Isabel Vargas
 
Penitência

Clarinda é uma mulher bonita. Deve ter uns quarenta e poucos anos.
Estatura mediana, corpo bem feito, nem gorda ou magra, curvilínea, cabelos bem curtinhos, pele morena do sol, que ela apanha em sua caminhada diária, por todo lugar, a qualquer hora, geralmente na área central da cidade.
A boca sempre pintada. Único indício de sua vaidade. Anda sempre arrumadinha.
Quem a vê circulando pelas ruas da cidade não imagina que tenha alguma aflição a lhe atormentar a alma. Sua face é tranquila.. Talvez possam imaginá-la uma aspirante a atleta em fase de treinamento intenso, pois anda sempre pelo meio da rua. Também pode ser que precise se exercitar bastante por questões de saúde. Na calçada ninguém a vê nunca.
Seu vai-vem diário tem algumas paradas com hora e local certo. Nas igrejas, centrais e em horários de missa.
Chega um pouco mais cedo. Ali ela começa os preparativos.Não são muitos, mas significativos. Mostram respeito na indumentária, devoção na face.
Se está de bermudas, veste uma saia discreta ou uma calça longa. Ali mesmo, na frente do templo..
Antes do início da missa ela coloca um véu branco que lhe cobre a cabeça, desce pelos ombros e cai até o joelho. Segura o véu com as mãos que juntas próximo ao peito completam o visual da Maria que ela carrega dentro de si e expande no olhar em cada reza, canto ou ato penitencial. No ofertório a oferenda é o sofrimento diário para ver se tira de cima dos ombros um pouco da dor que leva consigo desde que sua linda menina de cabelos negros, cheios de cachos que lhe caíam nas costas foi atropelada por um motorista bêbado que subiu na calçada. É ela que Clarinda coloca nos braços da Virgem toda vez que se ajoelha lá na frente do altar e estende os braços fervorosamente.
Isabel Vargas 
 

Percepção

Fui passar o final de semana fora. O mais interessante de tudo: sozinha. Precisava respirar. Sentia-me sufocada com tanta exigência por parte dos que me cercam. Nunca tinha feito isto. Estava feliz e temerosa. Como me sairia? Seria uma pequena prova do que é viver só. Queria sentir o gostinho da liberdade. Ou da solidão.
Não seria mais do que um final de semana.
Almocei no restaurante que me pareceu satisfatório. Bonito, boa clientela, as pessoas falando discretamente. Não gosto de pessoas falando alto nem gesticulando em excesso.
Procurei uma mesa de canto, com boa visibilidade para o restaurante e para a rua, que eu podia ver através da grande janela.
O almoço se desenrolava tranquilamente. Depois iria caminhar para rever a cidade que me encanta. Lojas, cinemas, galerias, teatro estavam incluídos em meu roteiro de final de semana. A ordem não importava. Queria aproveitar tudo.
Meu desejo secreto: redescobrir meus gostos, recuperar recordações de outrora, reencontrar a jovem de 20 anos atrás. Quem sabe resgatar sonhos que se perderam.
Algo inusitado aconteceu.
Na mesa à minha direita percebi alguém que parecia familiar. Não lembrava quem era, se personagem de um livro ou de um filme. Talvez ambos.Era bonita, com ar requintado, gestos comedidos e sorriso controlado. O olhar era distante, como de quem sonha.
O homem ao lado, cortês, amável, solícito, não deixava espaço para ela respirar, viver, desenvolver-se. Dava-me a idéia de um cão a lamber seu dono. Era como se adivinhasse o que ela iria fazer e se antecipava. Atitude castradora.
Soterrada em meio a tanta gentileza ela parecia sentir-se livre nos pensamentos.
O garçom dirigiu-se a ele como Dr. Carlos. Ele tratava a esposa pelo nome: Emma. Descobri quem eram. Não conseguia acreditar naquela materialização. Eu devia estar doente.
Parecia uma cena real.
Tive vontade de me dirigir a eles. Perguntar a ela inúmeras coisas. Se me respondesse talvez suas respostas me auxiliassem, mas também poderia desaparecer.
Isabel Vargas 
Percepções

Bia era uma criança linda. Cabelos dourados que os dias cinzentos não tiravam o brilho. Nos olhos via-se o céu, mesmo que em meio às mais barulhentas trovoadas. Ela era o próprio trovão. Sempre alegre, inquieta e inventando histórias. Não aceitava palavra dada, principalmente se fosse um não. Autoridade para ela era coisa para contestar. Nada a assustava.
A imaginação excessiva equilibrava a falta de brinquedos, de bens materiais.
Por ser imaginação não tinha limites. Nem para pensar coisas boas e outras não tão boas. As travessuras eram o que dava alegria a sua vida. Um pouco mais tarde as fugas da aula, Depois fumar escondido. O escondido dava mais encanto e sabor.
Mesmo as coisas mais banais necessitavam ter um acessório diferente.
Deixavam de ser banais para terem aspecto de aventura.
Só que ela criava tanto que essas invenções a faziam sofrer, pois não sabia o limite entre ficção e realidade.
Mas adianta dizer para alguém que as coisas não são exatamente como ela imagina, como criou ou como sentiu?
Essas percepções marcam a alma e dificilmente alguém de fora conseguirá transformar essas recordações, senão quem as criou.
Há ocasiões que marcam também o físico. E aí é mais difícil alterar.
Quando pequena teve varíola. Doença séria. Perigosa. Precisava ser comunicada à autoridade sanitária da cidade. Resultado: Isolamento. Distância da família. Não importava se criança ou adulto. Era questão de saúde pública.
O médico da família- naquela época tinha isso, mesmo que não houvesse dinheiro para pagar na hora- ficou penalizado com a situação da criança e da família por quem nutria afeição. Então ordenou: - Que ninguém saiba disso. Isolamento em casa. Só uma pessoa para atendê-la. Afastamento total de outras crianças. Outro conselho: - Escondam os espelhos. Geralmente, o aspecto ficava muito feio. A criança poderia se assustar com a própria aparência. Outro detalhe importante. Não poderiam deixar que ela coçasse as bolhas ou arrancasse as cascas. Causariam lesões. Que caíssem ao natural.
Assim foi feito. Todos entenderam. Menos ela. Decorridos mais de quarenta anos, surpreende a todos, em uma conversa, ao dizer que fora abandonada por todos na infância, na época da enfermidade e que um requinte de crueldade da família fora deixar espelhos guardados na gaveta do quarto. Quando ela os achou, não conseguia se reconhecer naquele espelho, pela deformação (temporária), mas que para ela durou uma vida inteira.
As explicações gerais não a convenceram. Quando se olha no espelho, as marcas estão lá para reforçar que tudo que sentira era muito real.
Isabel Vargas 
 
Relação fatal

Floriano considerava-se uma pessoa afortunada. Conseguira muitas bênçãos na vida. Assim ele se referia às realizações pessoais-afetivas ou profissionais. Nascera em família humilde com muitos filhos e firmes orientações sobre dever, honra, dignidade e respeito. Foi sobre estes pilares que alicerçou sua vida. Casou, teve filhos, educou-os com os mesmos preceitos que lhe foram passados pelos pais.
Era construtor. Orgulhava-se de sua profissão. Com as sólidas bases que edificou sua trajetória de vida também erguia as casas que para ele significam mais do que uma simples moradia, mas a materialização dos sonhos de muitas pessoas, em cujos espaços eram fortificados laços de amor, respeito, solidariedade. Lares onde desejava que as pessoas fossem felizes.
Ele mesmo erguera o seu onde foi possível ver os filhos crescerem com saúde, tornarem-se adultos. Orgulhava-se dos filhos e das profissões escolhidas. As duas filhas professoras, o filho, advogado.
Aos sessenta anos ficara viúvo. Um câncer roubou-lhe a esposa deixando só, após um período de intenso sofrimento. Acreditava que sua vida havia chegado ao fim, que seu ciclo estava completo e nenhuma novidade aconteceria. Com essa convicção seguia sua rotina diária, e como era muito religioso, sempre agradecendo pela vida e por tudo que havia conquistado e até pelos maus momentos, ciente de que a vida apresenta diversas facetas.
Próximo de completar 70 anos conheceu uma pessoa. Uma mulher de 40 anos, solteira. Não lhe havia passado na cabeça a idéia de tornar a casar-se. Com o incentivo de familiares foi procurá-la e em menos de um ano estavam casados No civil e no religioso. Senta-se revigorado. Passou a interessar-se pela vida. Viajavam, tiravam férias no Uruguai a cada final de ano. Visitavam sua filha que morava em outra cidade, passavam temporadas fora de casa.
Passara a ter medo da rotina.
Sentia-se feliz. Todos haviam aprovado sua decisão. Tinham uma relação familiar sólida.
Para ela, que já se julgava condenada à solidão para o resto de sua vida, encontrá-lo tinha sido uma grande sorte. Podia desfrutar de prazeres que sua condição financeira na permitia, pois trabalhava como balconista para sustentar a si e a mãe velha e doente.
Viveram juntos por dez anos. Ela ficou viúva aos cinqüenta, quando o coração octogenário de Floriano não resistiu ao esforço de uma noite de amor.
Ele morreu feliz, ela viveu o resto de sua vida lamentando a falta dele.
Isabel Vargas 

 
Livro de Visitas

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