SEBO LITERÁRIO
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Isabel Cristina Silva Vargas
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CONTOS
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Ciclos
O funcionamento de todo ser em desenvolvimento, a princípio, parece ser o mesmo. Crescer, descobrir o mundo, deixar-se descobrir pelos outros, experimentar possibilidades, encantar-se com as descobertas que abrem inúmeras possibilidades, mas que ao mesmo tempo, excluem outras, Não deveria ser assim, pois o sol não exclui a lua nem as estrelas. O dia não exclui a noite e ambos aceitam a chuva e os ventos, fugindo da rotina e aceitando as mudanças que com eles advêm. Generosamente, compartilham espaços, olhares, encantamentos daqueles que tem olhos de ver, coração à flor da pele e alma cigana que é capaz de estar em todo lugar, que não tem território próprio porque todo território é seu. É possível crescer em várias direções; para o alto buscando o céu, para o lado espalhando galhos que são braços, que protegem e abraçam de maneira carinhosa e acolhedora, para baixo fincando fortes raízes que se firmam dando suporte a tudo aquilo que está acima da terra e abaixo do céu (ou além dele), à vista dos olhos, ao alcance do olfato apurado capaz de distinguir cheiro de chuva molhada, de fruto maduro, de flor desabrochando; ouvidos afinados que ouvem o canto do sabiá, do bem-te-vi e do beija-flor que plana no ar, leve como os pensamentos inocentes e puros das crianças. Toda a existência cresceu dentro daquilo que era esperado, proporcionando segurança, proteção, aconchego, alegria e sombra sob a qual repousaram corpos cansados e mentes sonhadoras que ali, a seus pés, arquitetaram idéias, sonhos que ganharam o mundo em cada tentativa desafiadora ou conquista obtida. Teve espinhos que cutucaram (é para isto que servem, para desinquietarem, despertarem) cumprindo seu papel, mas também teve em si anjos que abençoaram, braços e abraços repletos de ternura e de alegria com os balanços das crianças que sustentou fortemente. Apesar de não ser mais criança, alimentou a dúvida e o questionamento que é a mola propulsora de quem não se conforma com as frases feitas, os cenários estanques, os sentimentos enquadrados em moldes pré-determinados e com o futuro sendo resultado de uma imutável operação matemática. A experimentação, o desafio do novo significa a janela que mostra novos horizontes e o caminho para experimentar novos modos de vida, que poderão até não se constituírem naquilo que é esperado, ou no vislumbrado, mas que servirão para mostrar o que vale a pena. Nesta etapa do percurso surgem as dúvidas, as incertezas, face à internalização dos conceitos que constituíram o sujeito e a vontade de arriscar-se para descobrir novos ensinamentos, novas finalidades, não ignorando durante a trajetória a presença constante de um superego controlador ou a culpa por abandonar velhos paradigmas que representam ensinamentos aprendidos como dogmas, mas que nos dias de hoje já não possuem o mesmo significado. É necessário ter o olhar bem mais além da linha do horizonte, querendo sempre transpor barreiras, desafiando o já dito e questionando o costume, a norma, o construído, o sentido (nas entrelinhas, no visível e no não dito, em outros dizeres que permeiam o caminho e que podem se constituir em novos saberes) criando novos desafios e novos espaços de experimentação. Este percurso pode mostrar o medo, instalar a dúvida do caminho a ser trilhado, desejando retornar a territórios conhecidos, identificados que apresentam características de normalidade, de estabilidade, de segurança, numa total contradição entre a segurança do conhecido e as inúmeras perspectivas do inexplorado. Nesta trajetória-espaço, tempo - de ser e não ser, de subir e chegar às nuvens ao mesmo tempo em que aprofunda raízes, de crescer e se deixar podar, de viver e de morrer, de ser árvore frondosa ou rio que corre e não deita raízes, é capaz de (mesmo com o coração partido, a seiva a sangrar) deixar-se cortar, para em cada labareda da chama da vida ou do fogo ardente e gélido da morte que acompanha o homem por toda a eternidade, esquentar os corações, virar fumaça que sobe para voltar em gotas de chuva que regam as sementes que tornarão a brotar num ciclo interminável de vida, doação, morte e renascimento. Enquanto isto, outro tipo de raiz, não aquela plantada no solo, mas a que é plantada no coração daqueles que servimos permanece viva, nutrindo o espírito que se eleva por entre as nuvens, as quais é possível ver de outra dimensão.
Isabel Vargas |
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Colar de Contos
Revelação
Descia as escadas quando ouviu os gritos:- O filho não é seu. Sentou-se no degrau e chorou.
Espera Inútil
Mais de uma hora à espera no altar. Já deveriam estar casados. Por quê?
Vingança
Os dois cães dormiam juntinhos na calçada. Raivoso chutou-os. A cadela que o abandonou não saía de sua cabeça.
Traição
Ao gozo seguiu-se a culpa. Perdera a hora do jantar com a família.
Final Inesperado.
O laudo balançava pela tremura incontrolável das mãos. Tudo girava à sua volta. Atravessou sem olhar o sinal que se abrira. Papéis voavam ao vento.
Desenlace.
Trinta anos. Uma vida inteira. Quanto tempo permaneceu ali parada desde o momento que ele bateu a porta?
Redes
Fechou o computador. Arrumou-se apressada. Finalmente, rendeu-se à modernidade.
Mudança
Após quarenta anos, não conhecia mais aquela com quem dividia a cama. Não sabia precisar a data de sua morte.
Doçura.
Ele a alimentava tão delicadamente que lembrava os passarinhos no ninho.
Juventude
Ao completar 70 anos, começava sua lua de mel.
Sentença
Nada tinha a esperar da vida. Acabara de ingressar na penitenciária.
Sorte Selada
Viu tirarem o couro do boi. Não iria esperar tirarem o seu também.
Morte Súbita
Um grito de gol. Sua derradeira explosão de alegria.
Com o pé no céu
Rodopiou no salão horas a fio. Nem percebeu quando voou leve ao som da música.
Juras
Felizes juraram amor eterno. Quando o baile terminou cada um seguiu seu rumo. Pena que não sabia nem o seu nome.
Pacto
Vivia há tanto tempo ali que já conhecia seus hábitos. Era amiga, confiável e determinada. Só aparecia quando eu dormia.
Caça
Ontem, deitado na cama do hospital, sentiu-se como a capivara que acertou décadas atrás.
Romance
A noite era cheia de expectativas. Deitou. Ele virou para o lado. Emocionou-se ao ver o dia clarear.
Carinho
Dormia. Sentiu um afago diferente. Abriu os olhos. Era o cão a lamber seu rosto.
Cotidiano
Ele sorvia as emoções do dia. Assistia televisão. No quarto, ela arrumava as malas.
Aviso
Latidos no meio da noite. Levantou. Na piscina o gato boiava.
Flagrante
Sentou-se apressada no restaurante. Levantou os olhos. O casal à sua frente a olhava atemorizado.
Cenário
A lareira acesa, o vinho, a música, Cenário pronto. O dia amanheceu. Ela dormia no sofá. Cenário intacto.
Sumiço
Ambos liam sentados debaixo do guarda-sol. De repente, só a bola estava jogada na beira da praia.
Impulso
Distraída no carona do carro, virou-se instintivamente. Lá estava ele na calçada. Era como se nunca tivessem se separado.
Caçada
Os cães dormiam à sombra. O gato silencioso descia pelo muro. O pássaro distraído comia a ração.
Mudança
A campainha tocou. A mudança iria começar. O cão disparou escada abaixo. Freada brusca na rua. O cão repousa no jardim da casa nova.
Espaço eternamente vago
Quando pequenos contava quatro cabecinhas na beira da praia. Ao crescerem só dormia depois que as quatro camas estavam ocupadas. Agora só três camas serão ocupadas. Passou a não dormir mais.
Teias
No silêncio da noite, só o barulho das agulhas a tricotar.
Caminho sem volta
No tapete, a marca da trilha percorrida da cama vazia até a porta de entrada.
Altar
Uma foto, a vela acesa, as flores e a oração.
Isabel Vargas |
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Conexões
Betina sentia-se culpada desde o trágico falecimento da prima.Culpada por não ter comparecido aos funerais, por não ter ido dar5 um último adeus àquela com quem tinha, além do parentesco, amizade r carinho. Não lhe fora permitido ir. Afinal, cidade pequena, morte trágica-assassinato pelo amante - pessoa conhecida e influente. Ela, uma simples estudante, rendera todo o tipo de comentário e maledicência. Era conveniente manter-se afastada, segundo as ordens dos pais. O preconceito por aquilo que classificavam como má conduta se sobrepunha à dor. Era como se fosse castigo pelo erro. Não teve intenção sequer de esboçar vontade de ir. Nem sabia se seus pais foram às despedidas. Era tudo muito velado. Comentários à boca pequena. Passado um tempo, foi ao campo santo por ocasião do falecimento de uma pessoa amiga. Resolveu, junto com o namorado, procurar o túmulo de Solange. Queria mostrar a ele o túmulo da finada. Andaram um bom tempo, sem sucesso, por entre os corredores do cemitério. Já estava pensando em desistir da empreitada de apresentação post-mortem quando ouviu um chamado. Só ela ouviu. De forma clara, inconfundível: "Betina!". Um arrepio percorreu-lhe a espinha. Virou-se para trás. À sua esquerda, bateu o olho na lápide que não havia percebido na passagem. Era ela: a Solange! Não acreditava no que ouvira r no que via. Mas as evidências estavam ali, bem na sua frente. Deixou as apresentações para depois. Saiu intempestivamente. Nunca mais voltou naquele lugar. Também não esqueceu o fato.
Seleta de Contos-Edição 2012
Isabel Vargas
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Conto programado
Um homem de terno cinzento entrou na tabacaria. Mostrava pressa e falou com agressividade ao mesmo tempo em que empurrava violentamente o homem atrás do balcão. Com a outra mão retirava todo o dinheiro da gaveta. Escondida no meio das prateleiras, uma pequena câmera filmava o assaltante. O rapaz caído estendia a mão e apanhava a arma embaixo do balcão. Havia um gato magro que miava sem parar. O assaltante ignorando a existência da arma, ainda contava o dinheiro. Não imaginava que podia haver reação daquele homem franzino caído no chão. Ouviu-se um estampido. Os seus olhos arregalaram-se. Não acreditava no que estava acontecendo. Passou a mão no peito. Ouviu-se um segundo estampido. O terno já não era mais cinza. O gato parou de miar. A casa estava cheia de amigos, vizinhos e parentes. Ninguém entendia como um homem correto, bom chefe de família tinha cometido aquela loucura. Todos estavam perplexos. Nada justificava aquele ato. Começou uma chuva miúda, mas logo vieram as trovoadas, o vento, os relâmpagos. Era uma moldura adequada para o quadro de desolação geral.
Isabel Vargas
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Correr riscos
Beatriz estava decidida a cumprir o prometido a si mesmo. Fez demorada leitura dos jornais do dia, onde assinalara alguns anúncios para buscar emprego. Antenor fingia ignorá-la enquanto se aprontava para o trabalho. Com determinação foi para o computador e lá ficou por muito tempo absorvida com a tarefa. Estava tranquila. Sentia que tinha tomado a decisão acertada. Não era movida por qualquer outro sentimento que não fosse o de sentir-se útil, produtiva, dona de si, de seus pensamentos, responsável por suas ações, em síntese, viva. Estava se sentindo mais leve, com a perspectiva de um futuro diferente, de possíveis realizações profissionais, o que lhe proporcionaria satisfação pessoal, alegria de viver e paz interior. Não devia desconsiderar que poderia não conseguir nada, seus planos não darem certo e sentir-se frustrada, mas devia tentar afinal viver é correr riscos. Este foi o segundo passo que dera para começar as mudanças. O primeiro foi iniciar a terapia. As sementes estavam sendo plantadas. Agora tinha que esperar que elas frutificassem. Dependia muito dela, das atitudes que tomaria para viabilizar estes projetos. Contava com a sorte também. Fez um leve sorriso. Ainda bem que um dia não é igual ao outro.
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Livro de Visitas
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