terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

VARAL DO BRASIL/OFICINA CRIATIVA/ RECORDAÇÕES DA INFÂNCIA

Recordações da Infância

ciranda_editada_copy
Organização de Marilu F. Queiróz
RECORDACÕES DA INFÂNCIA
Varal do Brasil

Em um Natal na casa da minha mãe, quando fazíamos amigos secreto, o amigo do meu neto (de 5 anos) foi o pai dele (meu filho). Quando chegou a vez dele chamar o amigo, ele disse: – O meu amigo secreto é uma pessoa que eu amo muito, eu não tenho medo, pois quando eu sonho com monstros ele vem manda-os embora, ele é o meu herói… ele é o meu Pai… Foi muito lindo.

Eu tinha 6 anos e já cursava o primeiro ano em um colégio de freiras, na cidade de São Leopoldo, RS. Lar de Meninas São José, era um orfanato situado em algum lugar entre o campo de futebol do Aymoré e a rodovia. Me lembro de suas paredes escuras e as meninas alegres por conhecer pessoas novas, de fora, como eu. Estava em semi internato, pois fazia aulas de catequese. Foi naquele tempo que as pessoas descobriram que não era tão simples lidar comigo. E foi quando eu comecei a sentir o peso de ser eu mesma, até que, anos mais tarde, me perdi tanto de mim que terminei doente. Bem, um dia enquanto cursava a primeira série, a professora Júlia, uma senhora mulata, sempre muito bem arrumada, com unhas longas nas mãos, enfrentou a minha fúria. Ela tinha impedido a minha colega Nice, de ir ao banheiro, e esta menina sofria de incontinência urinária. Ela era uma das órfãs daquele lugar. Nice trazia a pele clara, os cabelos dourados cortados em estilo pajem. Era linda e meiga. Diante da recusa, a menina se desesperou, e eu fui em sua defesa. Para que?? Senti a dor de uma unha enorme em minha orelha e puxão cheio de raiva daquela professora. Olhei para ela com toda minha raiva, no alto dos meus 6 anos e disse: Só quem toca em mim é minha mãe e meu pai. Tire as mãos de mim, sua bruxa. Neste ponto, a Nice já tinha urinado na sala, estava constrangida e eu furiosa. Falei pra Nice ir pra Diretoria e disse para a professora: Eu vou na diretoria contar o que a senhora fez. E saí porta afora, carregando o meu material e fui para casa. No outro dia estava instalada a confusão. Eu contei tudo para os meus pais e os dois foram comigo na escola. Foi um furdunço. E fui discriminada outras vezes. Até o dia em que tranquei a professora no banheiro e saí de alma lavada.

Era meu aniversário de sete. Não haveria festa. Era dia de semana. Minha mãe fez um bolo para o cadê da tarde para o qual viriam minhas tias.
Ela mandara fazer um vestido novo. Era de tafetá rosa, mangas curtas-era verão- com tomas na parte do corpo e a saia franzida, o que o deixava bem rodado. Estava muito contente e me sentia bonita com o vestido
.Naquela época era possível e não perigoso deixar as crianças ficarem à porta da casa, sentada nos degraus, com a porta aberta, pois a violência não era comum. Cidade pequena e pacata. Era uma rua estreita, bem no centro da cidade, todos os vizinhos conhecidos.
Ansiosa para receber os convidados, as tias que iriam para o café, ia até a esquina e voltava. A casa era no meio da quadra. Eis que em uma das vezes que ia até a esquina no sentido oeste, vinha do sentido contrário, pela calçada, um jovem de bicicleta, em velocidade acentuada, de modo que não pode frear e me atropelou. Lá fiquei atirada na calçada, toda arranhada nos joelhos, nos braços e no nariz. E meu vestido além de sujo, com pingos de sangue.
Quem me socorreu foi um senhor, que morava em frente de minha casa. Pegou-me no colo e me levou para casa, para grande susto de minha mãe e meus irmãos. pois custei a parar de chorar.
Sobrevivi ao trauma do atropelamento que, na realidade, não passou de um susto. Talvez o trauma maior fosse por ser dia de meu aniversário e estar me sentindo bonita no vestido novo, o que não era comum.
O que eu julgo interessante é que anos mais tarde, ao ingressar no serviço público, mediante concurso, vinte anos mais tarde, aquele que me socorreu na ocasião trabalhava no mesmo local e lembrava-se de mim.

Lembro que durante alguns anos moramos com minha avó materna e uma tia que nos acolheu – minha mãe, eu e meus dois irmãos- durante o período que meu pai foi trabalhar fora.
A árvore de Natal que me recordo é a que tínhamos nesta casa. Seus galhos eram de papel verde e os enfeites eram diferentes dos atuais. Bolas coloridas de vidro bem fino, quase uma casquinha de ovo, que ao menor aperto se quebravam, juntavam-se aos pássaros do mesmo material que eram presos aos galhos por uns prendedores de metal, semelhantes aos que são usados, atualmente, nos cabelos. Para dar a ideia da neve sobre os galhos, assemelhando-se às árvores das regiões nas quais o Natal é no inverno, espalhava-se camadas bem finas de algodão. Lâmpadas, nem se pensava à época. Para iluminar, fixavam-se com os tais prendedores, minúsculos castiçais de latão, com velinhas de cera torneadas, nas cores branca, vermelha ou verde, que à noite, ou no Natal, acendíamos. A árvore ficava próxima à janela da sala que dava para uma área interna. Não é difícil imaginar que, com o calor, e a brisa noturna -ou vento forte, dependendo da ocasião- acidentes não eram acontecimentos raros. Pois para frustração geral, a nossa árvore, como outras tantas, incendiou.
Brinquedos preciosos como Ana Lúcia, minha boneca de porcelana com cachos dourados e olhos que abriam e fechavam e que despertavam a curiosidade de minhas amigas que logo os empurravam para dentro com os dedinhos, eram minha alegria. Felizmente, os brinquedos não eram descartáveis, e minha mãe logo mandava consertar, tantas vezes quanto precisasse com aqueles, cujo ofício, para mim se assemelhava ao dos mágicos. Janjão era meu companheiro inseparável, um bebê, manequim de loja, que foi comprado por insistência minha, como me contaram anos mais tarde. A eles, somavam-se duas bonecas menores, iguais, também com o rostinho de porcelana e que eram as gêmeas.
Além destes poucos, mas preciosos brinquedos havia o trem maravilhoso que era para nossa brincadeira, de meu Dindo, meus primos e eu, que era sua afilhada do coração. Foi dele que ganhei o primeiro minúsculo relógio que guardo até hoje, por não ter coragem de jogar fora, apesar de não funcionar e também o casaco de pele- de lontra-, de uso, ecologicamente incorreto, na atualidade.
Após esta época, de doces recordações, segue-se outra, de tempos mais difíceis. Os brinquedos eram raros, para não dizer inexistentes, para desespero de minha irmã menor que não tinha consciência das dificuldades pelas quais passávamos e fazia lista com os brinquedos que desejava, o que só fazia aumentar a sua decepção, ao receber o que era viável – roupa – para o Natal não passar sem um presentinho e para suprir a necessidade imediata.
Apesar das dificuldades, não guardo mágoas. São, apenas, lembranças, que como tantas outras, me reportam às pessoas queridas, que hoje são estrelas em outra dimensão a iluminar nossos caminhos tal qual a estrela de Belém iluminou e apontou o caminho até Jesus Salvador.

Estava vendo TV com meus filhos que na época tinham quatro e seis anos. Daí então passou a propaganda de um filme de terror que ia começar logo mais. Meu filho, o de quatro anos, logo se animou querendo ver o filme, fazendo com que a filha também se animasse. Fiz toda uma pose e expliquei que infelizmente não seria possível, porque aquele seria um filme para adultos e que era do gênero de “dar medo na gente”. Qual não foi minha surpresa quando meu filho, sem pestanejar, me explicou: “Mãe, não dá medo não. É só gente com máscaras. Eles põem pintura no rosto e põem máscaras! É tudo gente, tu não precisas ter medo!” Claro que não vimos o filme, mas minha cara foi no chão com tanta realidade saída de um pequenino de quatro anos!!

Quando era moleque um dos meus dentes amoleceu, então, minha irmã ficou querendo arrancá-lo. Depois de muita insistência, deixei que ela amarrasse uma linha em volta do dito cujo. Depois de devidamente amarrado, ela deu um puxão na linha e extraiu o dente…errado. O bom foi que depois de arrancado o dente correto eu ganhei um gibi como consolação. Isso contribuiu muito pra passar a dor.

Quando tinha uns 7 anos participei de minha primeira batalha ‘sangrenta’. Quatro meninas, eu e minhas irmãs, contra dois adversários terríveis, nossos primos ora índios, ora cowboys. Heroínas na fortaleza da sala e bandidos na planície da varanda. Armas: estilingues. Munição: mangas e bolotas de mamona. Duração da batalha: uns 40 minutos até a chegada da Xerife Mamãe. Lambadas de vara de amoreira nas pernas e punição exemplar. Sentença : limpar as paredes da fortaleza e o chão da planície. Nem por isso deixamos de guerrear.


Na lembrança infantil mais viva, de meu contato com vovó Zefinha, estou sentada no alpendre, em uma cadeira alta, meus pés não tocam o chão. Ela fala comigo enquanto engoma com o ferro a carvão. Conta alguma história de princesa se preparando para uma festa em algum palácio encantado. Vez por outra abre e ergue o ferro, faz um movimento amplo e sopra na abertura menor localizada no lado oposto ao bico, afasta a cinza e ativa as brasas, assim posso ver as faíscas incandescentes que saem de dentro do ferro de engomar. Como me parecia bonita aquela cena! E nesta ocasião estou mais emocionada porque ela está engomando meu vestido branco novo. Está me ajudando a me aprontar para alguma festa, não lembro bem, talvez a primeira comunhão de algum tio ou primo mais velho. Mas, lembro perfeitamente de como me senti e do modelo do vestido.

Estou disposta a ficar sentada quieta para não me sujar ou amarrotar, já estou com a roupa de baixo, aguardo o vestido. É um vestido de fustão, saia bem franzida e mangas de coco. Uma rendinha de linha de algodão arremata as mangas e o decote. Ninguém sabe engomar tão bem quanto Vovó Zefinha. Depois de pronto o vestido ela me ajuda a vestir. A parte de traz da saia fica estendida sobre o encosto da cadeira para não se arrotar enquanto estou sentada. Fico quieta esperando a hora de sair. Imagino-me uma princesa, como as personagens dos contos que escuto. Juntando realidade e imaginação ficava fácil me comportar como uma menina tranquila e bem educada…Quieta, quase uma escultura, ou um quadro, sou quase uma pintura romântica!

O sumiço das alfaces  - Aconteceu numa das poucas vezes que meu avô Sebastião nos visitava com sua nova família. Uma de suas filhas a Wanda, minha tia, regulava comigo em idade e tamanho. Sérgio era mais velho e não se entrosava muito bem com meus irmãos. As pequenas Regina e Mirna minha irmã, ainda eram bebê.
Em uma manhã, Wanda me convidou para fazermos uma salada. Passou pela cozinha, surrupiou uma faca e nos dirigimos à horta, no fundo da casa. Colhemos dois lindos pés de alface, e depois depenamos os pés de tomates. Fomos até o tanque que ficava perto da área de serviço, lavamos e desfolhamos as alfaces. Depois dos tomates bem lavados cortamos em rodelas e acrescentamos a verdura. Wanda deu um pulo até a cozinha e veio com o azeite e o sal. O limão nós colhemos ali mesmo no quintal.
Depois da salada pronta nos dirigimos à barranca do riacho que passava nos fundos da casa e ali saboreamos a melhor iguaria que já havia comido em minha vida. Talvez por ter sido o primeiro prato que fizemos sozinhas, sem a ajuda de nenhum adulto.
Mamãe ficou muito brava quando soube de nossa proeza, mas acabamos não recebendo nenhum castigo. Apenas nos advertiu para que não fizesse mais nada sem antes pedir permissão.


Quando bem pequena eu era uma criança que não gostava de comer, só queria as frutinhas que cresciam nas árvores do quintal. Quando minha tia me oferecia algo sempre lhe respondia: não quero titia, estou cheia. Então ela me falava: Cheio é ônibus, nós falamos = estou satisfeita. Então cada vez que ela me oferecia algo, lhe dizia: Obrigada titia estou cheia como um ônibus.

Todo sábado costumava ir com meus filhos a pé ao shopping para assistir um filme. Meu filho mais novo me falou admirado algo que entendi como: Olha que sapato lindo de salto! Onde, filho? Perguntei curiosa. Onde, o que mãe? O sapato lindo de salto.Respondi. E ele me disse já morrendo de rir: Olha que sábado lindo de sol!!!!

Quando meu filho mais novo tinha seis anos ganhou no seu aniversário, um par de meias brancas muito bonitinhas, que tinham a estampa do Mickey. Como ele as usou uma vez somente e depois não quis mais usá-las fiquei intrigada e perguntei-lhe por que não as queria mais. Foi então que ele me respondeu: Quando o sangue trabalha e entra nos buraquinhos, esquenta. Então perguntei: Que buraquinhos? Batendo as mãos nas laterais das pernas ele me respondeu com carinha de quem sabe tudo: Dos ossos, mãe!

Quando comecei aprender inglês estudava sentada à mesa da cozinha, tendo ao lado uma xícara de chá de erva cidreira. Próximo da porta ficava o poleiro do papagaio que muito atento ouvia a minha tagarelice toda. Gostava de repetir várias vezes a mesma frase até quase decorar, pois a professora muito exigente fazia chamada oral todas as aulas. Foi então que percebi que quando falava uma determinada frase, o papagaio repetia a última palavra. A partir daí sempre incluía em meus estudos: The man is tall. Tall, tall – repetia com entusiasmo, o papagaio.

Estava na escola, devia ter uns 7 ou 8 anos, tinha chovido durante aquela madrugada. Então, a minha mãe disse-me para levar o guarda-chuva. Eu, sempre com a imaginação na lua, levava-o, mas nunca chovia. Nunca precisava usá-lo, então, acaba sempre por esquecê-lo ou perdê-lo. Certa manha, não foi exceção. Levei-o comigo e na hora do recreio percebi para que servia: Brincar de “D’Artagnan” com os Amigos. Finalmente, tinha percebido a origem da sua inutilidade: Não Guardar-me da Chuva, mas sim, proteger-me nas lutas. A partir de então, ficava toda feliz por levar o guarda-chuva e “ter super poderes”

Havia um quintal enorme na casa que a gente morava e foi naquele pedaço de terra que plantamos pés de fruta, um balanço, remédios, legumes e flores. Quando chovia formava um barro bom pra modelar bonecos e pequenos animais. Mas era de dia de sol que a criançada gostava mesmo, porque a mãe deixava a gente brincar até a hora da Ave-Maria, que às seis da tarde era rezada na rádio. Depois da oração entoada, todos corriam pra dentro, senão, como ponderava uma tia, nossos filhinhos feitos de sabugo de milho poderiam virar gente! Eu tinha um medo danado disso. E esse medo durava até que um cheiro de tempero nos chamava para a cozinha, fazendo-me esquecer os fantasmas. O mais gostoso dos dias era o de ventania. Nesses os redemoinhos davam uma festa, levantando toda a areia e tralhas do quintal. Então a gente ficava apostando quem teria coragem de entrar na nuvem de poeira para se encontrar com um saci velho que rodopiava tudo. Hoje, a memória soma saudades de terra molhada, banho de esguicho, sopa de feijão com legumes e da nossa inocência. Era bom demais!

Nenhum comentário:

Postar um comentário